v. 7 n. 16 (2023): Habitar o mundo, coexistir com o humano
O fim da filosofia, a multiplicidade, a diferença, o caos, a crise, a ruptura, o pós-moderno, o hipermoderno, a complexidade e tantas outras são as denominações utilizadas para se falar da vida que não mais se acomoda no uno, na identidade, na representação, no espírito absoluto, na determinação. Não é apenas uma questão de se demorar sobre o sentido do ser, mas a finitude exige os sentidos de ser, por isso, a divergência e a pluralidade tornam-se o leitmotiv de uma época aversa a arbitrariedade das sínteses. Há de se ter muitas vozes para as muitas dúvidas que afligem a vida contemporânea, já não basta olhar para o passado da filosofia, pois se faz necessária a conexão com as forças autóctones e para além do horizonte ocidental.
Os textos ora apresentados, que compõem o dossiê Habitar o mundo, coexistir com o humano, foram organizados de modo a prover ao leitor um panorama mais abrangente, ou ainda, uma pluralidade de perspectivas que, da modernidade à contemporaneidade, tangenciam os afetos que compõem as relações entre os humanos, bem como entre estes e o mundo que os sustenta e provê.
O leitor deve ter em mente a seguinte questão: como pensar o presente sem colocar em suspensão o que acreditamos? Repensar nossa relação com o mundo de modo a transformar nossa ação individual e coletiva precipita-nos na fronteira do conhecimento. Coloca em evidente tensão as convicções sobre o que entendemos por liberdade, economia, ecologia, democracia, técnica etc. Repensar esse solo comum de valores e representações permite observar o outro humano que somos e que não está determinado pela filosofia, pela arte ou demais regimes de saberes. Em um certo sentido, é preciso pensar o inumano em nós, isso que escapa à ordem das classificações, ao poder que hierarquiza e submete a existência a certa visão de mundo (Weltanschauung). Para se pensar outra coexistência possível, antes de tudo é preciso suspeitar.
O ponto de ancoragem deste conjunto de textos orbita o pensamento de Nietzsche, particularmente com temas nos quais aquelas relações se mostram mais prementes, aí se incluindo: a liberdade, o destino, o finalismo, o egoísmo, a sociabilidade, o ressentimento e a singularidade. É notadamente clara, em tais textos, a busca bem-sucedida por transpor os limites da exegese filosófica – sem dúvida relevante a um distanciamento dos equívocos interpretativos – e salientar, a partir daqueles temas, a relevância de seu pensamento para pensarmos problemas tão próprios da contemporaneidade.
Ainda que determine a tônica do dossiê, a nota nietzscheana, entretanto, não é a única. Dos doze artigos apresentados, metade deles compõem pontos de fuga que, se em maior ou menor medida retomam, dialogam ou mesmo contrapõem o pensamento daquele filósofo, trazem à nós, cada um à sua maneira e em face dos desafios que nos são próprios na atualidade, o problema dos afetos que envolvem as relações entre o humano e o mundo. Por definição, co-existir é existir com o outro na experiência da fronteira. Porém, fronteira não deve significar o que encerra, divide ou limita, a fronteira deve ser pensada como a tênue linha entre as multiplicidades, aquilo que permite o encontro, a passagem, a troca, a hibridização e a conexão das diferenças. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso que a filosofia interceda para quebrar as linhas duras que impedem o encontro e o surgimento do novo. Deste modo, pensar a coexistência é sempre pensar as coexistências, ou seja, o plural e o diverso. Aqui vêm à tona temas como: o imaginário, o acontecimento, a ancestralidade, a finitude, o meio-ambiente e a solidariedade.
É essa polifonia, em certo sentido, caleidoscópica – afeita, portanto, à pluriversalidade que habitamos e que nos habita –, que oferecemos ao leitor da Modernos & Contemporâneos o presente dossiê.
Boa leitura!